sexta-feira, 2 de março de 2012

Robert Musil: As Qualidades de um Autor à Janela do Mundo.


            
                                                                                                 Ubiracy de Souza Braga*
                                                     Tudo o que se pensa ou é afeto ou aversão” (Robert Musil).
 Robert von Musil nasceu na Áustria em 6 de novembro de 1880. Com a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 1938, Musil mudou-se para a Suíça - inicialmente Zurique, depois Genebra, cidade onde morreu em 15 de abril de 1942. Estudou engenharia e filosofia, obtendo em 1908 o doutorado. Foi um escritor austríaco, um dos mais importantes romancistas modernos. Ao lado de Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce forma o grupo dos grandes prosadores do século XX. Da sua obra destaca-se o monumental O Homem sem Qualidade (1998); (cf. Der Mann ohne Eigenschaftens,1952), é um “anti-romance” ou um “não romance” que é acima de tudo uma grande reflexão sobre a época de Musil. Sua estreia como romancista ocorreu em 1906 com o romance etnobiográfico: O Jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless) baseado na experiência do próprio autor em um colégio militar.  Esta obra constitui uma impressionante previsão, com quase trinta anos de antecedência, do sadismo nazista e de seus motivos psicológicos, segundo Fromm (1973) em The Anatomy of Human Destructiveness.
Nos anos seguintes, trabalhou como bibliotecário e Editor, depois fez parte do Exército Austríaco e lutou na Primeira grande Mundial (1914-1918). Após a guerra, Musil trabalhou de 1918 a 1922, como funcionário público, jornalista e escritor em Viena. Em 1930, lançou o primeiro volume (de uma série de três) da obra O Homem com Qualidades Definidas - os outros dois foram publicados em 1933 e 1945, respectivamente. Este trabalho, que ficou inacabado - ele morreria antes de completá-lo -, fez com que “a crítica da época saudasse Musil como um dos grandes escritores do século”. Em 1932, ele mudou-se para Berlim, onde residiu por um ano, em seguida, retornou para Viena, onde viveu até a anexação da Áustria pela Alemanha Nazista, em 1938. Depois da anexação nazista, Musil mudou-se para Suíça, para morar em Zurique. Mais tarde, mudou-se novamente, agora para Genebra, cidade onde morreu, em 1942.
Após a Guerra trabalhou como “servidor público” e jornalista em Viena fin-de-siècle que demonstra onde, quando e como se fabricou a modernidade: o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, os pintores Gustav Klimt e Oscar Kokoschka, os teatrólogos Hugo von Hofmannsthal e Arthur Schnitzler, o arquiteto Otto Wagner e o urbanista Camillo Sitte são alguns dos grandes inovadores que desfilam nesta cidade (cf. Schorske, 1988). Em 1930, Musil lança o primeiro volume dos três que compõem O Homem Sem Qualidades (os outros foram publicados em 1933 e 1945). Da sua obra, que abarca o romance, o ensaio, o teatro e o conto, destaca-se, O Homem sem Qualidades que foi considerada uma das obras literárias mais importantes do século XX com a obtenção do Prémio Goethe em 1933. Vale lembrar last but not least que parte da sua obra foi publicada postumamente.
Depois desse “romance-mundo”, que ficou inacabado, a crítica da época passou a saudar Musil como um dos grandes escritores do século - opinião que só se fortaleceu com o passar dos anos. Contudo, pesar das referências geográficas, O Homem Sem Qualidades não pretende ser um relato histórico ou uma descrição da sociedade austríaca da época. Não se trata de um romance regionalista, mas da tentativa de resolver o problema da realidade a partir do ponto de vista da consciência moderna. Sua intenção é descrever e criticar os elementos centrais da sociedade em geral, razão pela qual a “Kakânia” e sua população servem como paradigmas do mundo moderno (cf. Rentsch, 1990: 65) e como símbolos de um problema universal. A importância de Viena consiste apenas em ser uma cidade grande, pois O homem Sem Qualidades é um romance urbano que focaliza a constituição urbana do indivíduo.
            Robert Edler von Musil (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre - “quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos” - em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial. Aos dez anos Musil entrou para a Escola Militar em Eisenstadt, destinado à carreira de oficial. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn, obtendo o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart, cursou Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Berlim, doutorando-se em 1908 com tese sobre Ernst Mach (1838-1916), físico e filósofo austríaco. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (“unrettbares Ich”), seriam decisivos na formação de vários escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Musil. No plano da crítica metafísica, a falta de qualidades, inserida na tradição da filosofia moderna, isto é, do empirismo e do neopositivismo, assim como na teoria do conhecimento de Ernst Mach, é voltada contra o essencialismo da ontologia substancialista visando sua destruição.
            De acordo com Michel Hanke, há uma relação dialógica de qualidade, pois,
Ernst Mach, físico e professor de filosofia em Viena desde 1895, encontrou o acesso ao Eu através de análises físicas. Ele dissolveu o Eu nas chamadas qualidades sensoriais e perceptivas, impossibilitando assim sua percepção e representação integral (cf. o exemplo de Mulligan, 1990: 225 - a tentativa bem-sucedida de observar a minha ira acaba no desaparecimento da mesma). Esse “monismo psicofísico” conduziu a uma dissolução física do sujeito em complexos sensoriais isolados, de modo que a última instância de valores, a identidade do Eu unitário, é desmascarado como ilusão. A famosa fórmula de Mach, “O Eu não tem salvação”, fundada nos argumentos de Brentano e do Husserl da primeira fase, de Stumpf e de Ehrenfels, foi popularizada posteriormente por Hermann Bahr. O sujeito (ou Eu), enquanto portador firme de suas qualidades essenciais, era a substância por excelência da ontologia clássica; para o romance de Musil, a ideia central é “... que a crítica do conhecimento de Mach e sua doutrina elementar, junto com a dissolução da ontologia substancialista, representam uma dissolução do conceito tradicional do Eu, cuja realidade é garantida através da sua substancialidade” (Rentsch, 1990: 53 apud Hanke, 1998).
De 1914 a 1918, Musil participou ativamente da I grande Guerra na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao final dos combates chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de guerra do moribundo império (Ritterkreuz des Franz-Josephs-Ordens). Só a partir de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de sua condição de escritor. A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou o autor a se mudar para Viena e, mais tarde - depois de se sentir numa ratoeira, conforme ele mesmo chegou a escrever em seu diário -, para Genebra, aonde veio a falecer em 15 de abril de 1942. A publicação da primeira obra de Musil - O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless, 1906) - só foi levada a cabo através do incentivo do crítico berlinense Alfred Kerr. O sucesso posterior, e também a aprovação da crítica, foi imediato. No romance, Musil detém-se - com admirável agudeza psicológica - na consciência de um estudante de internato, às voltas com situações que antecipam - de maneira genial e visionária - o sadismo e a opressão nazistas.
O sadismo surge quando a afeição é substituída pela crueldade, neurose encarada como luta entre a auto preservação e a libido, onde o ego venceu, dando vazão a voz da libido (sexualidade). Para Wilhelm Reich, o orgasmo é, primeiramente, a expressão de um abandono de si, sem inibição, em direção ao parceiro. A libido do corpo inteiro flui através dos genitais. O orgasmo pode não ser considerado completamente satisfatório se for sentido apenas nos genitais; movimentos convulsivos de toda a musculatura e uma leve perda de consciência são atributos normais e indicação de que o orgasmo como um todo teve participação. Além disso, o incesto precisa ser explícito? Não poderia haver o êxtase de um elo místico entre eles, mesmo de forma toda e plenamente espiritual? “mas não, era espiritual e físico; o fogo que irrompera como centelha inicial continuava ardendo debaixo das cinzas. Talvez se devesse dizer: a alma de Ágata procurava outra maneira de arder livremente”.
                               
No início do século passado, na Áustria, o jovem estudante Törless, tímido e inteligente observava o comportamento sádico de seus amigos da escola, e não toma nenhuma providência, quando estes escolhem como vítima uma colega da sala de aula, até que a tortura vai longe demais. Adaptação do aclamado livro, o filme Der Young Törless (ALE/FRA, 1996, 87 min) de Robert Musil, esta obra prima, deu internacionalidade ao movimento do Cinema Novo Alemão, e ganhou em 1996 no Festival de Cannes, o Prêmio da Crítica Internacional para o já bastante premiado diretor, Volker Schlondorff. Estudo intrigante da natureza humana na sociedade moderna. O filme baseado no livro, realizado sessenta anos depois da publicação da obra, representou um grande êxito na Alemanha envolvida com a expurgação de um passado tenebroso.
O chamado Novo Cinema Alemão, em alemão: Neuer Deutscher Film ou Junger Deutscher Film é o nome dado à produção cinematográfica alemã das décadas de 1960 e 1970, influenciadas pela Nouvelle Vague francesa e pelos movimentos de protesto de maio 1968. Um filme de Bernardo Bertolucci, Os Sonhadores (Dreamers, The, 2003), narra a história de três jovens que, durante o Maio de 1968, veem a revolução acontecer “pela janela do quarto”. É um colírio para os olhos, um filme que pega um conflitante cenário político da década de 1960 e ensaia nela uma ardente história de amor vivida por esses três amigos. No caso do Neuer Deutscher Film seus realizadores mais influentes foram Alexander Kluge, Edgar Reitz, Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Werner Herzog (não se considerava um membro, mas era um importante simpatizante do movimento), Hans-Jürgen Syberberg, Werner Schroeter e Rainer Werner Fassbinder. Esses cineastas colocaram a crítica social e política no centro do seu trabalho - em oposição ao cinema de “puro entretenimento”. As produções eram geralmente implementadas independentemente dos grandes estúdios de cinema.
                                       
            MUSIL, Robert, O Homem Sem Qualidades.  São Paulo: Nova Fronteira, 1989.
As reuniões, de 1911 - duas novelas - e Três mulheres, de 1924 - três contos esticados –, foram às outras duas obras ficcionais publicadas por Musil antes de O homem sem qualidades. O drama Os entusiastas (Die Schwärmer, 1921) e a comédia Vicente ou A amiga dos homens importantes, de 1923, provaram que a pena de Musil também era afiada no teatro. O espólio literário do autor ainda revelaria várias obras de qualidade, entre elas o conto O melro (Die Amsel). Do ponto de vista analítico O homem sem qualidades representa a síntese final, tanto da obra quanto da vida de Robert Musil. Todas as obras anteriores do autor são uma espécie de preparação ao Homem sem qualidades, toda sua vida parece ter sido direcionada para a escritura final do romance. Contando apenas o tempo ativo, Musil trabalhou em sua obra-prima durante cerca de 15 anos, de 1927 até o dia da morte. A primeira parte foi publicada em 1930. Logo depois de ter sido lançada a segunda parte - em 1933 –, a obra foi proibida tanto na Alemanha quanto na Áustria. A terceira parte, ainda organizada pelo autor, seria publicada em 1943, na Suíça. A edição de 1952 traria o acréscimo de um quarto volume, organizado por Adolf Frisé e baseado nas notas deixadas pelo autor.
Em verdade, “O homem sem qualidades” é um fragmento gigantesco, de modo que se pode falar de uma falta de qualidades formais. O primeiro volume do romance saiu em 1931; tudo indica que Musil, depois de sua volta de Berlim, onde havia conhecido seu primeiro editor Ernst Rowohlt, trabalhou, desde 1921, como escritor livre na sua obra-prima, exercendo, concomitantemente, as atividades de crítico de teatro e ensaísta. Dificuldades financeiras motivaram a fundação de uma Sociedade Musil, possibilitando-lhe uma estadia em Berlim (1931 a 1933) e a conclusão da primeira parte do segundo volume. A dissolução da Sociedade-Musil pelos nazistas fez com que o autor voltasse a Viena e que se fundasse a Sociedade Musil Vienense. Afirma-se que a continuação do volume II, enviada à editora em 1938, tenha sido confiscada pelo governo alemão; de qualquer maneira, ela acabou na lista dos “escritos nocivos e indesejáveis”. O início dessa parte confiscada tinha como subtítulo “Rumo ao Império Milenar. Os criminosos”, sem que houvesse um segundo sentido político. Musil, nascido em 1880, faleceu no dia 15 de abril de 1942 no exílio suíço durante o trabalho no seu opus magnum.
Este romance-ensaio mostra a decadência dos valores vigentes até o início do século XX. Em sua narrativa a ação de O homem sem qualidades transcorre na Áustria imperial, dissimulada sob o nome de Kakânia. O romance constitui um vigoroso painel da existência burguesa no início do século XX e antecipa de certa forma, as crises que a Europa viveria apenas na segunda metade daquele mesmo século. A obra é - em suma - “o retrato ficcional apurado de um mundo em decadência”. Elaborado com fortes doses de sátira e humor, O homem sem qualidades é uma bola de neve de ações paralelas, que rola pela montanha do século abaixo, abarcando tempo e espaço, para ao fim engendrar um romance inteiriço, ainda que multiabrangente, pluritemático e panorâmico. Ulrich – “o homem sem qualidades” - faz três grandes tentativas de se tornar um homem importante: a) na condição de oficial, b) no papel de engenheiro (vide a carreira do próprio Musil) e, finalmente, c) como matemático, exatamente as três profissões dominantes – e mais características - do século XX. Afirma Musil:
se quisermos passar sem problemas por portas abertas, é bom não esquecer que elas têm ombreiras sólidas; este princípio, segundo o qual o velho professor sempre tinha vivido, mais não é do que uma exigência do sentido de realidade. Ora, se existe um sentido de realidade – e ninguém duvidará de que ele tem direitos à existência -, então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido de possibilidade. Aquele que o possui, não diz, por exemplo: isto ou aquilo aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer aqui, mas inventará; isto ou aquilo poderia, deveria ter acontecido aqui. E quando lhe dizem que uma coisa é como é, ele pensa: provavelmente, também poderia ser diferente. Assim, poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Como se vê, as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pessoas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou então as duas coisas como sendo indiferentes. Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito. Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza, débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito”.
Os três ofícios são essencialmente masculinos e revelam o semblante de uma época regida pelo militarismo, pela técnica e pelo cálculo que, juntos, acabaram desmascarando o imenso potencial autodestrutivo da humanidade. O relato acerca da busca “desencantada” de Ulrich lembra a velha busca – ainda sagrada – do Santo Graal. A compreensão da realidade característica da obra e do pensamento de Musil é rematadamente satírica. A índole “ensaística” do autor arranca máscaras e sua ficção trabalha na confluência dos gêneros. Musil é um escritor “contemplativo”, de “postura clássica”, situado à janela do mundo e atento a seus movimentos. Tanto que, em várias situações de suas obras, seus personagens aparecem à janela. Ao utilizar vários elementos do ensaio, e inclusive ensaios inteiros no corpo da ficção, além de fazer uso livre do discurso pretensamente científico - ainda carregado de poesia – na compleição do romance, Musil dá vida à hibridez de sua narrativa. A frialdade da linguagem, a formalidade da postura do narrador são apenas superficiais. Se à primeira vista o olhar do narrador é marcado pelo intelectualismo – frio e impessoal –, logo se descobre que isso é apenas um meio apolíneo contra o perigo dionisíaco do mundo (Nietzshe), e que a indiferença gelada da superfície apenas mascara a paixão ardente do interior (Weber).
No livro-romance seu personagem Ulrich se sente um “homem sem qualidades” porque o mundo contemporâneo inverteu os princípios do humanismo e colocou a matéria no centro da realidade moderna. Na verdade, Ulrich via em si todas as qualidades e capacidades privilegiadas por sua época - exceto a de ganhar dinheiro, da qual também não necessitava -, mas foi obrigado a constatar que a possibilidade de aplicá-las já havia lhe escapado às mãos. “Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem aquele que as vive” e, assim, o personagem se vê confrontado com as contradições centrais do universo contemporâneo: a luta entre causalidade e analogia, entre crença na ciência e pessimismo cultural, entre lógica e sentimento, em suma. No fim, o que resta é a impossibilidade de perpetuar a reconciliação entre eu e mundo, de consumar a “entrada no paraíso”, a ataraxia de Schopenhauer, a placidez ausente de vontade e busca da vita contemplativa.
Todos os personagens de O homem sem qualidades apenas são importantes na medida em que se relacionam com Ulrich, na medida em que são, inclusive, superfícies nas quais ele mesmo se espelha. Todos eles não deixam de configurar, de certo modo, possibilidades e aptidões do próprio Ulrich. Mesmo o assassino de prostitutas Moosbrugger, o símbolo central do descalabro em que se encontra o mundo, é um espelho no qual Ulrich se vê refletido, já que os delírios do homicida não deixam de ser variações extremas das experiências de Ulrich em relação àquela que chama de “outra condição” (anderer Zustand), de sua busca incansável da liberdade do disparate e da vivência original, paradisíaca. Na segunda parte do romance, aliás, Ulrich passa a vivenciar cada vez mais situações de enlevo quase sobrenatural, em que já não logra mais distinguir os limites espaciais e temporais do mundo que o envolve. Mais tarde Ulrich inclusive tenta a “outra condição” junto com Agathe, sua irmã, a “duplicação assombreada de si mesmo na natureza oposta”. O amor mítico-incestuoso entre os dois constitui uma das mais belas e dolorosas histórias de amor da literatura universal.
Adotando uma atitude fundamentalmente irônica diante da sociedade, e decidida a lutar contra a estultice do século - contra “a imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas” -, Musil muitas vezes foi compreendido como utopista, ou até místico, por alguns críticos, decididos a “dinamitar” o vigor de sua obra. O autor que foi tão corrosivo ao representar o mundo em sua realidade distorcida e deformada na figura mítica de uma Kakânia caquética, é transformado assim num sujeito extravagante e pouco afeito à realidade. Um leão sem garras nem dentes! Já em 1972, Helmut Arntzen - crítico da obra de Musil - dizia que “os críticos pareciam fazer gosto em apresentar o autor na condição de animal exótico, místico e de movimentos graciosos”. Dessa forma, o escritor combativo e heroico – conforme Musil se compreendia – era transfigurado num metafísico dócil, no homme de lettres que ele sempre renegou, num autor distanciado da realidade, provido de alguns requintes matemáticos na linguagem e de outros tantos talentos psicológicos na análise da alma humana.
A postura “contemplativa” de Musil foi entendida como passiva, a “utopia do ensaísmo” pregada por Ulrich - seu personagem - como uma visão utópica do mundo. Na verdade, Musil fez apenas lutar pela recuperação da atividade de mensurar melhor, quantitativa e qualitativamente, os sentimentos e o “volume espiritual” das relações humanas; sem a ingenuidade do romantismo, mas sem a secura do realismo bruto. De quebra, deu nova fisionomia ao sujeito, nova potência ao “eu”, tornando-o estética e radicalmente consciente, ainda que o fizesse perambular no âmbito daquilo que outro crítico - Wolfgang Lange - chamou de “loucura calculada” ou “suspensão calculada da razão”. A intuição poética de Musil, enriquecida por seu aguçado espírito científico, proporcionou ao autor a capacidade de traçar um vasto panorama ficcional de sua terra e da Europa do século XX. Postado “à janela do mundo”, Musil examina, para lembramos de Heidegger (cf. Braga, 2012), em última instância, o valor da inteligência objetiva do homem diante das casualidades mundanas.
Nunca é demais repetir que o termo alemão be-deuten, na reflexão de Martin Heidegger em Ser e tempo (Sein und Zeit, Halle, 1927; Max Niemeyer Verlag, Tubingen, 1986), insinua que se lhe está atribuindo uma acentuação forte a partir do étimo principal – deuten = “mostrar, apontar, interpretar”. Na analítica da mundanidade, todo ato e exercício de interpretação, indicação e demonstração se exercem a partir de um mundo já estruturado e estabelecido. Be-deuten = significar que remete então para o “movimento e processo de estruturação do mundo”. A tradução por significar e significância (na derivação de Bedeut-samkeit) visa a que a leitura remonte a esse nível ontológico de constituição da mundanidade.
Ora, entendemos que à fala pertence aquilo sobre o que se fala. A fala dá indicações sobre algo e isso numa determinada perspectiva. A fala retira o que ela diz como essa fala daquilo sobre que fala como tal. Na fala, enquanto processo social de comunicação, isso é o que se torna acessível à co-presença dos outros, na maior parte das vezes, através da verbalização da língua.  O que no apelo da consciência constitui o referido da fala, ou seja, o interpelado? Manifestamente a própria presença. Essa resposta é tão indiscutível quanto indeterminada. Mesmo que o apelo tivesse uma meta tão vaga, ele ainda seria para a presença um motivo de prestar atenção a si mesma. Pertence à presença, no entanto, de modo essencial, que, com a abertura de seu mundo, ela está aberta para si mesma, de tal modo que ela sempre já se compreende. O apelo alcança a presença nesse movimento de sempre já se ter compreendido na cotidianidade mediana das ocupações. O impessoalmente si mesmo do ser-com com os outros é também alcançado pelo apelo.
 A interpretação existencial da consciência deve expor um testemunho de seu poder-ser mais próprio que está sendo na própria presença. O testemunho da consciência não é um anúncio indiferente, mas uma “apelação apeladora” do ser e estar em dívida. O que se testemunha é, pois “apreendido” no ouvir que compreende o apelo sem deturpações, no sentido por ele mesmo intencionado. Apenas a compreensão do interpelar, enquanto modo de ser da presença propicia o teor fenomenal do que é testemunhado no apelo da consciência. Caracterizamos a compreensão própria do apelo como querer-ter-consciência. Esse deixar o si-mesmo mais próprio agir em si por si mesmo, em seu ser e estar em dívida, representa do ponto de vista fenomenal, “o poder-ser próprio, testemunhado na presença”. A sua estrutura existencial deve ser agora liberada numa exposição. Somente assim penetraremos na constituição fundamental da propriedade da existência que se abre na própria presença. Enfim, enquanto compreender-se no poder-ser mais próprio, “o querer-ter-consciência é um modo de abertura da presença”. Além do compreender, esta se constitui de disposição e fala. O compreender existenciário significa: projetar-se para a possibilidade fática cada vez mais própria do poder-ser-no-mundo. Poder-ser, porém, só pode ser compreendido em existindo nessa possibilidade. 
Enfim, o documentário: Janela da Alma representa a estreia na direção de Walter Carvalho. Etnograficamente foram realizadas 50 entrevistas, das quais 19 foram selecionadas para serem utilizadas no filme. As entrevistas foram realizadas em análise comparada em duas etapas: em novembro de 1999, no Brasil e parte da Europa, e em abril de 2000, no Brasil e em parte dos Estados Unidos. Dezenove pessoas com diferentes graus de deficiência visual, da miopia discreta à cegueira total, falam “como se veem, como veem os outros e como percebem o mundo”. O escritor e prêmio Nobel José Saramago, o músico Hermeto Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz Marieta Severo, o vereador cego Arnaldo Godoy, entre outros, fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos relativos à visão: o funcionamento fisiológico do olho, o uso de óculos e suas implicações sobre a personalidade, o significado de ver ou não ver em um mundo saturado de imagens e também a importância das emoções como elemento transformador da realidade ­ se é que ela é a mesma para todos.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Bibliografia geral consultada:
Vídeos: Robert - Musil - Museum Klagenfurt; Fred Ulfers. The Utopia and Essaysm of Robert Musil; Robert Musil - Kinder und tote haben keine Seele; Robert Musil`s Facebook by Augusto Mariane; Robert Musil - Das Fliegenpapier; MUSIL, Robert, Der Mann ohne Eigenschaften. (Org. Adolf Frisé). Hamburg, 1952; MUSIL, Robert, O Homem Sem Qualidades.  São Paulo: Nova Fronteira, 1989; HAKE, Michael, “A qualidade de O homem sem qualidades de Robert Musil”. Texto apresentado para o seminário “A comunicação e seus intercessores” (9-11/12/1998) da Linha de Pesquisa “Comunicação e Linguagem” do Curso de Pós-Graduação em Comunicação Social, FAFICH-UFMG, 11 de dezembro de 1998. Tradução: Georg Otte; SCHORSKE, Carl E., Viena fin-de-siècle - Política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; HEGEL, G. W. F., Fenomenologia dello Spirito. Florença: La Nuova Itália, 1973, 2 volumes; Idem, “A Fenomenologia do Espírito” (Excerto). In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980; Idem, System der Wissenschaft/Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main; Suhrkamp, 1986; KAFKA, Franz, Carta ao Pai. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997; Idem, O processo. São Paulo: Editora 34, 2002; LEMAIRE, Gérard-Georges, “Iniciação à dor do amor”. In: Kafka. Porto Alegre: L & PM, 2006, pp. 88 e ss; BLOOM, Harold, Gênio - Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003; LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B., Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Martins Fontes, 1970; BRAGA, Ubiracy de Souza, “Notas sobre o Bicentenário d`A Fenomenologia do Espírito, de Hegel”. In: Revista eletrônica Achegas.net. Rio de Janeiro, nº 33, jan. - fev. 2007; Idem, “Os Intelectuais e a Razão na História”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2010/06/26/; Idem, “Martin Heidegger e o Caráter de Apelo da Consciência: Be-deuten”. In: http://www.oreconcavo.com.br/2012/01/16/; Idem, “O Tapete Vermelho do Óscar 2012 - Viva a Nostalgia”. In: http://estudosviquianos.blogspot.com/2012/02; WEBER, Max, Ensaios de Sociologia (Org. por Hans Gerth & Charles Wrigth Mills). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982; Idem, Economia y Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, entre outros. 

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