terça-feira, 27 de março de 2012

Reducionismo na ciência e na mídia



Ulisses Capozzoli
A exemplo de dietas que fazem bem ou mal à saúde e que periodicamente sofrem reviravoltas radicais – com as pesquisas refutando completamente o que defendiam antes –, outros assuntos não deveriam ser levados a sério pelos leitores de jornais e revistas. São pura besteira. É o caso da pesquisa publicada originalmente pelo New York Times e republicada pela Folha de S.Paulo no sábado (1/4): "Oração de estranhos não ajuda cardíacos, diz estudo".
Se assuntos dessa natureza pudessem ser tratados com a objetividade de uma pesquisa sobre comportamento de ratos e outras cobaias de laboratório, a ciência já teria devassado inteiramente a espiritualidade ou, no extremo oposto, sucumbido a ela. É surpreendente como certas questões acabam reduzidas ao mais pobre mecanicismo travestido de método científico, com a pretensão de oferecer respostas claras e simples ao que é, por natureza, complexo e profundo.
O repórter Benedict Carey registra que a questão é controversa entre os pesquisadores e "há quem acredite que rezar seja a mais profunda resposta humana para doenças, o que pode aliviar o sofrimento por meio de algum mecanismo ainda não compreendido, como o efeito placebo".
É uma posição, no mínimo, cuidadosa.
Richard Sloan, da Columbia University, ouvido por Carey, sintetiza o equívoco do mecanicismo superficial que aflora em estudos dessa natureza: "O problema de se estudar a religião cientificamente é que se agride o fenômeno ao reduzi-lo a elementos básicos, capazes de serem quantificados, e isto faz mal tanto para a ciência como para a religião".
A pesquisa, que custou 2,4 milhões de dólares e ouviu 1.800 pessoas durante quase uma década, na avaliação sensata de Sloan é "um desperdício de dinheiro".

Condição subalterna
Para os chamados "céticos" – ainda que por motivos diferentes –, abordagens científicas de temas dessa natureza também é desperdício de dinheiro, o que faz pensar que, ao menos em alguns casos, a opinião dessa comunidade faz sentido.
Por que abordagens pretensamente científicas de questões dessa complexidade são desenvolvidas e ganham as páginas de jornais e revistas? A resposta certamente é mais ampla que pode sugerir um texto tão apressado como o das colunas dessas publicações. Mas não se pode negar que reflita uma surpreendente linearidade do que aprendemos a reconhecer como realidade, como decorrência de uma espantosa indigência intelectual. É uma das manifestações do homem massificado, inconsciente de sua própria existência, diria um pensador preocupado com os destinos humanos, como Ortega y Gasset.
No Museu de História Natural, em Nova York, há uma fascinante representação de um xamã siberiano tratando um enfermo atirado sobre um catre. O xamã está preso pela cintura, por uma corrente, a um de seus auxiliares no ritual de cura. Quem quer que tenha observado a emocionante beleza dessa cena de medicina primitiva, sugerindo um diálogo profundo com o grande desconhecido, não se atreveria a reduzir os possíveis efeitos de uma oração no que quer que seja. Oração como diálogo com o grande desconhecido, como sugeriu Blaise Pascal (1623-1662), físico, matemático e filósofo religioso que influenciou gerações inteiras de pensadores, de Jean Jacques Rousseau a Henri Bérgson, e um dos pais do existencialismo.
A verdade é que, hoje, mesmo a oração está esvaziada de seu sentido ritualístico, sagrado e profundo, reduzido às palavras vazias e de emoções fabricadas nos púlpitos dos caça-níqueis em que a religiosidade foi transformada por uma diversidade de igrejas.
Numa sociedade que prezasse os direitos fundamentais do cidadão, entre eles o da religiosidade (a espiritualidade e a inteligência nos fazem humanos), todos esses patifes estariam presos.
Mas estamos reduzidos a uma condição subalterna, que Francis Bacon – um dos pais da ciência moderna – não reconheceria. O Estado fez de cada um de nós simples pagadores de impostos sem a contrapartida do mínimo de bem-estar, independente de quem seja o ocupante do poder.

Tempo desperdiçado
Na pesquisa que deu origem a estas considerações, os pacientes escolhidos foram divididos em três grupos. Dois deles receberam orações e o terceiro não, sendo que todos eram pacientes cardíacos.
Como é possível tamanha simplificação? Por que, sendo todos eles pacientes e portanto merecedores de possíveis efeitos como o das orações, um terceiro grupo foi alijado? Em nome de que provável objetividade científica?
O critério adotado como procedente para essa categorização foi permitir que parte dos pacientes tomasse conhecimento de que estaria sendo beneficiada por prováveis efeitos das orações, enquanto a outra parte não soube disso.
Qual o sentido dessa decisão? Talvez Pascal ajude a responder ao se perguntar o que o homem é dentro da natureza. E responder: "Nada em relação ao infinito e tudo em relação ao nada". O homem, segundo ele, "é um ponto intermediário entre o tudo e o nada", incapaz de compreender os extremos. Para os humanos, considera Pascal, tanto o fim como o princípio das coisas permanecem ocultos e assim nos é impossível ver o nada de onde saímos e o infinito que nos envolve.
Blaise Pascal não foi a única inteligência de sua época a recusar submeter-se à simplificação da realidade. O napolitano Giambattista Vico (1668-1744) também refutou essa conformação. Em A Ciência Nova, publicada em 1725, Vico defendeu a idéia de que o homem é sujeito e objeto de sua história e que para reconhecê-la é preciso situá-lo no interior de seu universo cultural, acompanhado de sua linguagem e de seus mitos.
Mas discutir mitologia, mesmo em ambientes acadêmicos, ainda é um desafio. Muita gente confunde mitos com os relatos mais elementares de contos de fadas. Talvez esta seja outra das explicações possíveis para pesquisas absurdas, com as quais os leitores não deveriam desperdiçar tempo nem energia.

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